segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Sou Eu Em Chamas

  Sinto o calor em meu corpo até precisar me afastar do fogo que consome um colchão, roupas velhas, uma cadeira velha e uma mesa velha. Do fundo de casa consigo ouvir uma banda tocando um bom e velho rock'n roll e também em outro lugar toca cantigas de natal.
  Eu odeio natal.
  Então num misto de selvageria regados a solos de guitarra dos anos 70 e vozes de coral cantando sobre Jesus e o fim do ano observo parte de minha vida queimar. Assisto a mim mesmo queimar.
  Hoje é dia 23 de dezembro, dias atrás no começo do solstício de verão raspei minha cabeça. Como se celebrasse, mas até agora não sei exatamente o que ou porque.
  Eu estava me sentindo preso durante uns bons meses, e então senti a liberdade e logo em seguida, a raiva.
  Como um cão raivoso morando em meu peito querendo destruir tudo o que toca, tudo o que vê e principalmente tudo o que ama. Ela vem forte, contraindo meus músculos, estreitando minha visão e me fazendo querer destruir tudo. Então para não fazer alguma besteira maior, como enfiar uma faca em minha jugular ou ir para o centro destruir um banco, começo a recolher porcarias pela casa que ninguém vai sentir falta. Minha antiga mesa de trabalho, umas roupas que nunca mais usarei, um colchão velho que estava guardado na garagem e uma pequena cadeira que eu usava antigamente na mesma mesa. A cadeira tem desenhos de arabescos e alguns detalhes desenhados por mim e uma amiga há alguns anos atrás, nunca terminamos de pintá-la.
  Não há álcool então uso um removedor de manchas feito de nafta de petróleo. Jogo sobre as coisas empilhadas no fundo de casa, acendo com um isqueiro e me afasto. O fogo começa a se espalhar lentamente até que atinge algum pedaço de pano encharcado de nafta de petróleo e então ascende como uma fogueira de festa junina. Grande. Pequenos tufões de fogo se formam em seus cantos fazendo com que a fogueira pareça viva. E enquanto assisto penso. "Esse sou eu, sou eu em chamas."
  As chamas começam a consumir o colchão feito daquela espuma de produtos químicos fazendo com que ela derreta e comece a pingar, agora aquela criatura viva está morrendo e derretendo na minha frente. "Esse sou eu, sou eu em chamas."
  Enquanto observo as chamas levarem aquele pedaço de mim embora para sempre sinto algo se acalmando em meu peito. Como se dissolvendo. Enquanto o tecido se transforma em cinzas, a madeira em brasa e a espuma em um líquido negro em chamas se esparramando pelo chão sinto algo resfriando em mim, mesmo sentindo o calor. O suor começa a escorrer pela minha testa e meu peito como se tivesse corrido uma maratona, mas fico por lá, afinal "esse sou eu, sou eu em chamas."
  Uma leve chuva começa, mas já é tarde. Tudo já se tornou cinzas e brasa. Restos negros de materiais químicos derretidos no chão. Permaneço sob a chuva até ela apagar toda a chama. "Esse fui eu, estava em chamas, agora já foi."
  De volta para dentro me sinto calmo. Como se tivesse feito algo grande, como se os males que eu possa causar tivessem sido cremados junto as porcarias que queimei. Mas não, era só minha raiva. Uma raiva que nem sei de que. Do mundo, de mim. Tanto faz. O que importa é que ela reside em mim, faz de mim sua morada contra minha vontade e logo ela se tornará novamente um cão raivoso, e então terei de fazer mais um truque para acalmá-la.
 

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